Nos últimos anos, a discussão sobre curtailment ganhou espaço no setor elétrico brasileiro. A redução forçada da geração, especialmente em usinas solares e eólicas, deixou de ser um evento isolado e passou a ser um fenômeno estrutural. Mais do que uma questão técnica, o curtailment se tornou um dos maiores desafios para a viabilidade dos projetos, a previsibilidade dos contratos e a atração de investimentos de longo prazo.
O Fenômeno do Curtailment no Brasil: Definição, Causas e Classificação
O curtailment, refere-se à redução ou ao corte forçado da geração de energia, em particular de usinas movidas por fontes renováveis intermitentes, como eólica e solar.
Essa interrupção ocorre quando a produção de energia excede a capacidade de consumo ou, mais comumente, as limitações da infraestrutura de transmissão para escoar o excedente para outras regiões. A decisão de cortar a geração é tomada pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) para manter a estabilidade da rede, evitando sobrecargas e colapsos.
Causas Estruturais Subjacentes
O principal vetor do fenômeno é o descompasso entre a velocidade de implantação da geração renovável e o ritmo de expansão da infraestrutura de transmissão. Enquanto projetos de geração, movidos por investimentos privados, podem ser construídos e entrar em operação em prazos relativamente curtos, as obras de transmissão, que dependem de um ciclo de planejamento e leilões burocrático e longo, levam anos para serem concluídas.
A consultoria internacional Wood Mackenzie estima que o curtailment no Brasil pode sofrer um aumento de 300% até 2035 caso o ritmo de expansão da rede não acompanhe a instalação de novas usinas.
Além do gargalo na transmissão, a superoferta de energia em relação à demanda é um fator agravante. O perfil de geração das fontes renováveis, com picos de produção durante o dia (solar) ou em períodos de alta velocidade de ventos (eólica), nem sempre coincide com os horários de maior consumo.
De acordo com a consultoria PSR, a sobreoferta de energia no Brasil chegou a 25% em 2024, com 100 GW médios de oferta para cobrir uma demanda de 80 GW. Essa sobrecarga estrutural no sistema é uma causa direta da necessidade de cortes.
A Nuance Regulatória: Tipos de Curtailment e Critérios de Compensação da ANEEL
A classificação do curtailment é um ponto central na discussão regulatória do setor, pois a natureza do corte determina os critérios de compensação para os geradores:
- Curtailment por confiabilidade (CNF): cortes de geração realizados para garantir a estabilidade do sistema e manter os limites físicos de operação, como controle de frequência e tensão. A ANEEL considera que estes são riscos intrínsecos ao negócio do gerador e, portanto, não prevê ressarcimento para estes cortes.
- Curtailment por razão energética (ENE): ocorre devido à baixa demanda, ou seja, quando o sistema não consegue alocar a energia gerada na carga. A ANEEL também não prevê ressarcimento para este tipo de corte, pois o classifica como um risco de mercado, considerando que a decisão de investimento deve levar em conta o equilíbrio estrutural entre oferta e demanda. Ao contrário do CNF, a energia “perdida” por ENE não pode ser recuperada em outro ponto do sistema.
O Impacto do Curtailment na Viabilidade de Projetos e Financiamentos
O impacto do curtailment vai muito além da operação das usinas. Ele compromete a saúde financeira dos projetos e redefine a percepção de risco no setor. As três principais dimensões a serem avaliadas são: as perdas financeiras e a queda da rentabilidade, que reduzem a previsibilidade de receitas; a perspectiva do investidor, marcada pelo aumento do risco e da incerteza contratual; e a sinergia com outros desafios de mercado, em especial o fenômeno da curva do pato, que evidencia os efeitos combinados da expansão renovável e das restrições da rede elétrica.
Perdas Financeiras e a Queda da Rentabilidade
A consequência mais direta do curtailment é a perda de receita para os geradores de energia renovável. Quando a energia que poderia ser produzida é intencionalmente desperdiçada, a receita potencial do projeto é reduzida, diminuindo a eficiência global do sistema e elevando o custo efetivo por unidade de energia gerada. Para os desenvolvedores de projetos, isso significa um retorno menor sobre o investimento e um período de recuperação de capital mais longo. O impacto financeiro já é substancial:
- a Associação Brasileira de Energia Solar Fotovoltaica (ABSOLAR) estima perdas de R$ 1 bilhão por ano para os setores eólico e solar.
- Projeções da Bloomberg New Energy Finance indicam que o curtailment pode reduzir a receita de projetos eólicos em até 10% em algumas regiões, afetando significativamente sua viabilidade econômica.
- O caso da Voltalia, que registrou 14% de curtailment em sua frota no Brasil, ilustra a dimensão do problema para grandes operadoras.
A Perspectiva do Investidor: Aumento de Risco e Incerteza Contratual
Do ponto de vista dos investidores, o curtailment representa um risco financeiro considerável, tornando projetos menos atrativos sem garantias regulatórias claras ou mecanismos de compensação.
A incerteza quanto à capacidade de um projeto de entregar a energia contratada afasta capital, especialmente o internacional. A preocupação é tão real que, na região Nordeste, os modelos de viabilidade de projetos já incorporam uma projeção de curtailment entre 2% e 10%.
Como consequência, as empresas devem considerar esses cortes ao estabelecer contratos de compra e venda de energia (Power Purchase Agreements – PPAs), ajustando as expectativas de receita e o retorno sobre o investimento.
Sinergia com Outros Desafios de Mercado: O Cenário da “Curva do Pato”
A complexidade do problema é aprofundada quando o curtailment é analisado em conjunto com o fenômeno da “curva do pato” (duck curve). A “curva do pato” descreve a flutuação dos preços da energia ao longo do dia: eles caem drasticamente durante as horas de maior irradiação solar (entre 10h e 16h), quando há uma superoferta de energia, e disparam abruptamente no final da tarde, durante o pico de demanda líquida do sistema.
O curtailment ocorre precisamente nos horários em que os preços da energia já estão no seu ponto mais baixo, ou seja, durante os picos de geração renovável. A sinergia dos dois fenômenos cria uma complexa situação financeira para os geradores: em um momento, eles são obrigados a cortar a produção de energia que poderia ser vendida (mesmo que a um preço baixo), e em outro momento, são forçados a comprar energia no mercado de curto prazo para cumprir suas obrigações contratuais nos horários de pico, quando os preços estão no seu ponto mais alto.
Essa “pinça financeira” eleva os custos operacionais e afeta diretamente a viabilidade dos projetos, já que o gerador precisa arcar com o custo de energia mais cara para compensar a produção perdida, o que acaba por encarecer os contratos de longo prazo e repassar o risco para o consumidor final.
Respostas do Governo Federal: O Papel dos Leilões e a Mitigação do Problema
As respostas ao avanço do curtailment passam, em grande parte, pela atuação do governo federal. A estratégia combina medidas estruturais e regulatórias: de um lado, a expansão da infraestrutura de transmissão, condição essencial para reduzir os gargalos que levam ao desligamento forçado de usinas; de outro, a discussão de uma proposta legislativa para criação de leilões de ressarcimento, voltados a compensar economicamente os agentes afetados. Juntas, essas iniciativas não eliminam o problema, mas representam um passo importante para alinhar planejamento, investimentos e segurança no setor elétrico.
Expansão da Infraestrutura de Transmissão: Um Vetor para a Mitigação
A expansão da rede de transmissão é a resposta estrutural de longo prazo para o curtailment. O planejamento do sistema é centralizado e envolve a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e o ONS, com a Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) sendo responsável por operacionalizar os leilões e conceder as outorgas.
O Ministério de Minas e Energia (MME) publicou um novo cronograma com cinco leilões de transmissão previstos até 2027. O Leilão nº 04/2025, por exemplo, agendado para 31 de outubro, prevê R$ 7,67 bilhões em investimentos para construir 1.178 quilômetros de novas linhas e expandir a capacidade de transformação do sistema.
Uma Proposta Legislativa: o Leilão para Ressarcimento de Curtailment
Paralelamente às soluções de infraestrutura e tecnologia, o Legislativo tem discutido propostas para abordar o problema do curtailment por meio de mecanismos de mercado.
O Projeto de Lei 2.987/2015, que tramita na Câmara dos Deputados, é um dos instrumentos centrais dessa discussão, e suas emendas incluem propostas para ressarcimento de perdas financeiras por cortes de geração.
Uma das propostas em análise sugere a criação de um “leilão de curtailment“, um mecanismo para que as perdas financeiras dos geradores, causadas exclusivamente por razões de confiabilidade elétrica, indisponibilidade ou atrasos em instalações externas à usina, possam ser vendidas em um certame organizado pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), similar ao leilão de GSF.
A ideia é que os compradores desses títulos de perda possam, em contrapartida, ter suas concessões hidrelétricas estendidas por até sete anos. Embora ainda em fase de discussão, esse tipo de leilão representa uma abordagem inovadora para monetizar as perdas dos geradores, oferecendo um novo vetor de segurança para o setor.
Conclusão
Em última análise, a superação do curtailment é o próximo grande desafio para o setor elétrico brasileiro. Sua resolução determinará o ritmo e a competitividade dos investimentos em energia renovável, consolidando a posição do Brasil como líder global na transição para uma matriz energética limpa e sustentável.
Como a UNA pode ajudar na mitigação dos efeitos do curtailment nos projetos de geração
A UNA, utilizando nossa expertise em Project Finance e no setor de energias renováveis, para inclui projeções precisas de curtailment em seus modelos de viabilidade. Essa análise detalhada permite quantificar as perdas de receita e o impacto no retorno do investimento, oferecendo aos desenvolvedores uma visão clara para a tomada de decisões e aos investidores a transparência necessária para avaliar o risco, o que ajuda a liberar capital e garantir a viabilidade de novos empreendimentos.
Fontes e Referências:
Por que só se fala em “curtailment” no setor elétrico? – Simple Energy, https://simpleenergy.com.br/por-que-so-se-fala-em-curtailment-no-setor-eletrico/
Mitigando o Curtailment Energético: Oportunidades e Desafios para Investir em Renováveis e Soluções de Armazenamento no Brasil – Eduardo M Fagundes, https://efagundes.com/blog/mitigando-curtailment-energia-brasil/
Renewable energy faces new challenge in Brazil: understand what curtailment is and why it worries experts – Click Oil and Gas, https://en.clickpetroleoegas.com.br/Renewable-energy-faces-new-challenge-in-Brazil-understand-what-curtailment-is-and-why-it-worries-experts/
Curtailment no Brasil: como o setor elétrico está lidando com o …, https://visaogeo.com.br/curtailment-no-brasil-como-o-setor-eletrico-esta-lidando-com-o-desafio/
Curtailment de Energia: por que a limitação da geração é uma realidade no Brasil? – Exame, https://exame.com/esg/curtailment-de-energia-por-que-a-limitacao-da-geracao-e-uma-realidade-no-brasil/
Brazil forecast to hit 8% curtailment by 2035 amid renewable energy transition – PV Tech, https://www.pv-tech.org/brazil-forecast-to-hit-8-curtailment-by-2035-amid-renewable-energy-transition/
ONS avança em soluções para o curtailment – Além da Energia, https://www.alemdaenergia.engie.com.br/ons-avanca-em-solucoes-para-o-curtailment/
Curtailment no Brasil pode triplicar até 2035, alerta Wood Mackenzie – Canal Solar, https://canalsolar.com.br/curtailment-brasil-triplicar-wood-mackenzie/
Curtailment no Setor Elétrico Brasileiro: Desafios Estruturais e Estratégias de Mitigação, https://ensaioenergetico.com.br/curtailment-no-setor-eletrico-brasileiro-desafios-estruturais-e-estrategias-de-mitigacao/
Diretor da Aneel sugere teto para ressarcimento por curtailment – JOTA, https://www.jota.info/energia/diretor-da-aneel-sugere-teto-para-ressarcimento-por-curtailment
Sistemas de Energia do Futuro: Soluções regulatórias para redução ou limitação da geração na operação de tempo real – Cooperação Brasil-Alemanha, https://cooperacaobrasil-alemanha.com/SEF/RegE-Giz-Aneel_Relatorio_Consolidado.pdf
Curtailment em energia renovável: entenda a prática e seu impacto no setor, https://deltaenergia.com.br/blog/artigo/curtailment-em-energia-renovavel-entenda-a-pratica-e-seu-impacto-no-setor
Os impactos do curtailment e da curva do pato para contratos de …, https://exame.com/esg/os-impactos-do-curtailment-e-da-curva-do-pato-para-contratos-de-energia-solar/
Expansão da Transmissão — Agência Nacional de Energia Elétrica – Portal Gov.br, https://www.gov.br/aneel/pt-br/assuntos/transmissao/expansao-da-transmissao
A Expansão da Transmissão – ONS, http://www.ons.org.br/paginas/energia-no-futuro/transmissao/expansao
Ministério de Minas e Energia divulga calendário de leilões de transmissão até 2027, https://www.gov.br/mme/pt-br/assuntos/noticias/ministerio-de-minas-e-energia-divulga-calendario-de-leiloes-de-transmissao-ate-2027
ANEEL inclui cinco lotes no primeiro Leilão de Transmissão de 2026, https://www.gov.br/aneel/pt-br/assuntos/noticias/2025/aneel-inclui-cinco-lotes-no-primeiro-leilao-de-transmissao-de-2026
MME cancela Leilão de Reserva de Capacidade na forma de Potência de 2025, https://www.gov.br/mme/pt-br/assuntos/noticias/mme-cancela-leilao-de-reserva-de-capacidade-na-forma-de-potencia-de-2025
PL com abertura do mercado e leilão do curtailment avança na Câmara – MegaWhat, https://megawhat.energy/politica-energetica/pl-com-abertura-do-mercado-e-leilao-do-curtailment-avanca-na-camara/